A sinfonia do grotão

Folha de São Paulo 08/09/2010

GILBERTO DIMENSTEIN
A sinfonia do grotão

NUMA RIBANCEIRA DA FAVELA de Paraisópolis, desocupada por um incêndio que queimou os barracos, está surgindo uma improvável iniciativa: a sede de uma orquestra filarmônica.
Por trás dessa iniciativa, há um personagem mais improvável ainda, um incentivador da música erudita: migrante baiano, filho de uma mulher surda-muda que teve 14 filhos, hoje espalhados pelo Brasil, Gilson Rodrigues, 26 anos, por muito tempo, dormiu debaixo da mesa de um bar em Paraisópolis. “A orquestra é meu grande sonho”, diz.
O próprio Gilson só gostava de samba e pagode. Mas, indo a concertos, foi se convencendo de que os moradores iriam, como ele, descobrir a riqueza da música erudita.
O projeto arquitetônico já está pronto e, agora, Gilson está atrás dos recursos para montar a orquestra, cuja meta é descobrir talentos na própria comunidade. “Tudo isso começou com a impossibilidade.”
Depois que aquela área, batizada de “grotão”, pegou fogo, começaram a pensar o que fazer ali. Por causa da inclinação acentuada, ninguém aparecia com uma boa ideia. “Diziam que o máximo que se podia fazer era colocar grama”, conta Gilson, presidente da Associação de Moradores de Paraisópolis.
Rapidamente, porém, o terreno seria reocupado por novos barracos e a comunidade perderia a chance de ter uma área comum.
Gilson já tinha desenvolvido em Paraisópolis projetos de música que foram bem aceitos.
“Mas o pessoal gosta mesmo é de rap, samba ou pagode.” Gostaria de ver gente apreciando música erudita, como ocorre em Heliópolis.
Mas uma coisa é pagode, outra é montar toda uma orquestra, que exigiria ensaios periódicos.
Estudante de direito, Gilson aprendeu a fazer contatos tanto com lideranças políticas dos mais diversos partidos -o projeto de reurbanização de Paraisópolis é desenvolvido com apoio dos governos estadual, federal e municipal- quanto com empresas. Foi assim que conseguiu uma rádio comunitária legalizada e levou bancos, grandes lojas e companhias aéreas para a favela.
Conseguiu estabelecer uma boa rede de contatos -até porque muitas dessas empresas, inicialmente desconfiadas da vizinhança, perceberam, com o resultado das vendas, que estavam fazendo bons negócios entre os chamados “emergentes”.
Com o projeto doado, a prefeitura aceitou colocar a sala de concertos no plano de urbanização, aproveitando a ribanceira até então vista como imprestável -e, com isso, a cidade, ao fundo do palco, vai se transformar numa paisagem.
A ideia entusiasmou maestros. Aprovou-se a orquestra com leis de incentivo fiscal; um banco já fez a doação. Mas ainda é cedo para saber se aquela ribanceira, antes só ocupada por barracos, vai ser tomada pela música.
Para quem, aos cinco anos, viu a mãe morrer, morou debaixo de uma mesa de bar, entrou na faculdade, virou líder comunitário e ajudou a montar um plano de reurbanização que atrai a atenção de arquitetos pelo mundo, um grotão se transformar em sede de orquestra não parece tão difícil assim.

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