O que é a dança? Essa pergunta poderia ter um milhão de respostas. Ainda hoje, mesmo após anos de desenvolvimento acadêmico especializado, o questionamento segue sendo motivo de debate. Inicialmente, sabemos que a dança é um comportamento milenar feito culturalmente por inúmeros grupos ao longo da história. O problema está com a ideia Ocidental de que existem movimentos melhores que outros. Corpos em competitividade constante entre si. A divisão colossal e cruel entre “belo” e “feio”. A diferença entre as danças estaria caracterizada pela complexidade técnica, que quanto mais refinada, aproxima os humanos do “divino” espetacular. Essa necessidade de contato com uma beleza superior é fruto de um longo processo ideológico de controle corporal, onde o equilíbrio e a estética estão atrelados a uma ideia de ordem. Por sua vez, esses ideais partem de um modelo específico de sociedade que não tem absolutamente nada a ver conosco enquanto país colonizado.
Pensando principalmente no ballet “clássico” – quais são as possibilidades corporais que ele nos oferece identitariamente? Corpos magros, brancos, altos e sem protuberâncias nos seios e nas nádegas. Temos exceções em algumas instituições mais progressistas, porém mercadologicamente esse é o padrão mais buscado. O “clássico”, apesar de ser lido como sinônimo de “antigo”, significa justamente o que o nome propõe: a mais alta classe. Sempre foi feito e ainda é feito para homenagear o antigo regime europeu – sistema do qual é impossível ser desconectado. Apesar das grandes transformações possibilitadas pela pressão da sociedade civil e a criação de espaços mais acolhedores para ensino da técnica clássica, ela ainda carrega uma violência institucional imensa – tal qual o nosso racismo de todo dia. Sem contar que, aos olhos da sociedade, as danças que não se enquadram na trajetória linear eurocêntrica – tem menos qualidades estéticas e sociais. E adivinhem! A maior parte dasdanças julgadas nesse processo de desclassificação são AFRODIASPÓRICAS: hip-hop, funk, samba, entre tantas outras.
Chamamos de “afrodiaspóricas” todas aquelas danças que surgem a partir do deslocamento forçado às Américas de povos diversos advindos principalmente da costa do continente africano (Congo e Angola, por exemplo). Grande parte das manifestações culturais que hoje são apropriadas pela cultura de massa, tem suas raízes nesses povos. Empurrados para as periferias dos grandes centros urbanos, grupo étnicos diversos encontraram na cultura o principal elo entre a memória, o corpo e a cidade cinza. A dança, principalmente, é uma grande marca de todo esse processo de resistência experienciado na formação da modernidade. “O Hip Hop e o Vogue nas periferias de Nova York (Estados Unidos), o Dancehall nas periferias de Kingston (Jamaica), o Kuduro em Luanda (Angola), a Capoeira e o Funk no Brasil. São muitos exemplos. Apenas corpos pretos que vivenciaram e ainda vivenciam a experiência de serem corpos pretos periféricos poderiam ter criado essas danças, pois são danças atravessadas pela opressão de raça e classe, criadas para expressar o que é viver sob o jugo dessas opressões e confrontá-las ao mesmo tempo.”
Assim, coloca Jô Gomes, dançarina, pesquisadora e professora de danças negras, tradicionais e urbanas e Mestra em Dança pela UFBA. Natural de Brasília, mas morando em São Paulo, a artista se posicionou criticamente ao modo como importante instituição de dança tratou o Funk em montagem de espetáculo no Teatro Municipal. “O Balé da Cidade de São Paulo criou um espetáculo de Passinho chamado ‘Isso dá um Baile’. Seria lindo se não fosse o contexto: “Para as preparações das coreografias (…) o corpo artístico do Theatro Municipal recebeu um workshop de Celly e Neguebites.(…)” Quando a matéria fala “um workshop” refere-se a um numeral mesmo. Um. Apenas um. Fica a pergunta: uma pessoa que fizer uma aula de ballet consegue dançar Lago dos Cisnes? Por que um workshop de Passinho pode gerar um espetáculo? (…) São Paulo produziu um funk específico, que gerou danças específicas (Passinho do Maloka e Passinho do Romano), mas o Balé da Cidade de São Paulo (…) foi atrás do Passinho Foda, criado no Rio de Janeiro (…) Seja qual for o motivo, foi mais um case de apropriação cultural: esvaziou o sentido da dança e não se preocupou em ter nenhuma vivência de fato com a cultura.”
Tendo em vista essa grande problemática que enfrentamos há séculos, Jô Gomes desenvolveu diversos meios de existir na metrópole e quebrar algumas dinâmicas. Um deles é através da docência, onde aplica suas vivências em danças pretas de maneira pedagógica – fundamentalmente pelo funk.
A conheci durante a formação em Danças Urbanas no Centro de Referência da Dança, na qual temos um módulo dedicado a cada manifestação: vertentes do hip hop, passinho, montagem correográfica, entre outros.
Ocupar ambientes institucionais através do funk é de extrema importância, pois seu espaço foi sempre taxado como inferior, sexual, violento. Ele é um reflexo das mazelas da sociedade, e assim como qualquer elemento cultural, é capaz de ir a favor ou contra a corrente que o gerou.
O Centro de Referência da Dança (CRD), além de estar em um lugar privilegiado – o centro da cidade – também já foi um representante do discurso oficial e clássico. A partir de 1943, o estabelecimento que ocupa uma das galerias inferiores do Viaduto do Chá, foi residência da atual Escola de Dança de São Paulo (antiga Escola Municipal de Bailado). O foco era proporcionar uma formação em Dança Clássica para a elite paulistana com sua identidade em formação. Após a desintegração do local e mudança da instituição para a Praça das Artes, houve uma série de eventos de ocupação urbana chamados de “Ocuparoots”. Sound System (reggae), graffitigrafite e oficinas de escrita e outras atividades. Após período de negociação com as autoridades foi transformado novamente em equipamento municipal, e hoje tem uma gestão artístico-cultural que visa a produção cultural da sociedade civil, assim como atividades gratuitas, oficinas, cineclubes, saraus e afins (Gestão Corpo Mocambo). Apesar de ter sido um ambiente de elitização da dança, hoje possibilida a residência de diversos corpos e grupos. Como mais uma conquista das Danças pretas, Jô Gomes mantém um treino fixo de Passinho aberto ao público e totalmente gratuito ás sextas-feiras, a partir das 18h.
Com toda essa trajetória descrita acima, entendemos que existe um abismo social gritante entre apreciar e apoiar uma cultura, ou simplesmente se apropriar de seus símbolos em benefício próprio. No caso do Theatro Municipal, devemos tecer críticas ao modo como os “acadêmicos” ainda compreendem as danças populares. Entender que há complexidades e um processo criativo/pedagógico intenso, que deve ser fomentado e respeitado. Promover debates sobre o funk é, acima de tudo, reescrever uma linhagem da Diáspora, que através da falta de memória coletiva enfraquece sua potência. O funk não é uma subcultura ou conteúdo superficial, ele apenas precisa ser reencontrado e pensado com cuidado e atenção – assim como tem feito Jô Gomes.