
Dia desses, sonhei que estava numa festa, papeando com uma amiga. De repente, aproximou-se de nós nada mais nada menos que Wladimir Putin, o presidente russo. Ele trazia nas mãos uma taça e, efusivo, ofereceu-me a bebida, enquanto exaltava suas qualidades. (Parêntesis: não sei como nos comunicávamos, pois eu não falo russo e ele, até onde sabemos, não fala português. Mas sonho é sonho, né?). Minha sensação era de apreensão. Diante de seu histórico público de violências, a “simpatia” do autocrata na cena onírica parecia-me totalmente falsa. Eu temia que minha recusa provocasse nele uma reação agressiva. Por outro lado, também receava morrer envenenada com a bebida – método de assassinato atribuído à KGB, serviço secreto do regime soviético (hoje sob outras designações), onde Putin foi agente. Não lembro como acabou a confusão na tal festa, mas sobrevivi – e acordei.
Dias depois, uma amiga do trabalho contou-me ter tido um pesadelo: estava às voltas com atrasos em voos, no qual aparecia Donald Trump. Assim como no meu sonho, havia tensão e medo.
Não me parece ser coincidência. Lembrei-me do livro “Sonhos no Terceiro Reich”, publicado pela jornalista alemã Charlotte Beradt em 1966 (no Brasil, lançado em 2017 pela Editora Três Estrelas e em 2022 pela Editora Fósforo). A partir da chegada de Hitler ao poder, em 1933, Beradt coletou relatos de sonhos de 300 pessoas, que espelhavam o assombro e o temor diante da realidade política da época. O medo e a angústia se manifestavam nos pesadelos com o cotidiano nazista, permeado de tensões.
Um exemplo didático descrito no livro é um sonho em que surgia uma máquina da polícia capaz de ler pensamentos – o último reduto de liberdade ameaçado pelo ambiente totalitário. Frequentemente, estava presente a culpa: pessoas que enxergavam o terror ao redor sentiam-se impotentes e inertes diante do temor vigente. A autora, prudentemente, conseguiu encaminhar sua pesquisa para pessoas fora do território alemão, reunindo os textos depois, quando já exilada nos Estados Unidos.
Embora o contexto atual seja diferente, há também similaridades. Durante a ascensão de Hitler e, mais tarde, no período das invasões a outros países, durante a Segunda Guerra Mundial, a propaganda teve papel central, sob controle do Ministro Joseph Goebbels. Livros considerados “inapropriados” ao regime foram queimados; a educação foi moldada segundo os interesses nazistas; arte e imprensa foram controladas e censuradas pelo Estado. O rádio era instrumento de transmissão da ideologia autoritária, da suposta “supremacia” ariana, estimulando o “otimismo” com as conquistas do Terceiro Reich e disseminando mentiras fabricadas. Buscava-se a unanimidade – e sabemos que a unanimidade, além de burra, é perigosa.
Hoje, o método Trumpista (e de outros líderes autoritários) também tenta construir essa suposta unanimidade de pensamento. Mas o cenário é diferente do de Hitler, pois conta com a internet e as redes sociais – para o bem e para o mal. Por um lado, as fake-news são majoritariamente construídas e difundidas para enaltecer a ideologia autoritária. Por outro lado, ao menos em regimes abertos, em que a internet não é controlada pelo Estado (felizmente, os Estados Unidos ainda estão neste grupo), cada pessoa pode ser produtora e divulgadora de conteúdo. Nesse contexto, não há como estabelecer um pensamento único, e a cacofonia predomina.
Essa facilidade de acesso a informações – falsas ou verdadeiras – não exime os humanistas da percepção de um ambiente cada vez mais tenso. Saber de tudo o tempo todo tem suas consequências para a saúde mental – e invade também nossos sonhos. Ao acordar, é difícil lidar com a tendência à anomia global e com a pergunta: qual será a novidade insana de hoje?
Essa experiência é penosa, não apenas pelo presente, mas pelo que poderá acontecer no futuro, para a realidade de nossos filhos e netos. Resta-nos torcer para, algum dia, termos sonhos e não mais pesadelos – e acordar numa realidade distensionada e democrática, onde a diversidade de pensamentos seja respeitada.
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