A segunda maior favela da Capital, a Paraisópolis, com 80 mil habitantes, encravada entre prédios e casas luxuosas no bairro do Morumbi, Zona Sul, tem um inimigo declarado. Não é a Polícia Militar, facção criminosa, traficantes ou qualquer tipo de contravenção
Os moradores têm na ponta da língua a forma de acabar com ele. Até uma organização social foi criada exclusivamente para lidar com a questão. As grandes empresas também estão envolvidas. Personalidades públicas fizeram a sua parte, alguns doaram centenas de milhares de reais para ajudar a causa. O problema não tem cara, mas deixa um rastro avassalador: o analfabetismo.
A União dos Moradores de Paraisópolis atua desde 2003 na proposta de erradicá-lo. Um passo largo foi dado em 2007, com a criação do programa Escola do Povo. A meta é que os 15 mil analfabetos ou quase 20% da população local, recebam capacitação educacional. Até agora 5.000 já aprenderam a ler e a escrever. “Nossa luta é persistente, precisamos acreditar em nossos sonhos e trazer a educação para quem mais precisa”, comentou Luzia Rosa de Deus, 24 anos, diretora e uma das primeiras professoras do programa.
Outras grandes mudanças também alavancaram o desenvolvimento e a autoestima da comunidade, como a entrada de grandes empresas, a instalação de agências bancárias, lojas de varejo, caixas lotéricas, até a formação de um time de rúgbi. Sem contar os investimentos das três esferas governamentais em infraestrutura, Saúde, Educação, capacitação profissional, e a alteração da postura do crime organizado.
Passado sangrento
Em Paraisópolis já houve o período triste e sangrento, como na maioria das favelas brasileiras. “No passado era difícil morar por aqui. Eram muitas mortes bestas e outras violentas demais. Mas a gente não tinha condições de sair”, relembrou o funcionário público Ricardo Vilela, 56 anos, mais conhecido como Maguila.
A Polícia Militar fez uma ocupação em 2009, com confrontos, mortes e a paz supostamente anunciada. A tranquilidade realmente existe para os moradores. A equipe do Diário passou um dia no local e foi abordada duas vezes por supostos marginais e ouviu o mesmo conselho dezenas de vezes da população: cuidado por onde anda.
Os moradores garantem que dormem tranquilamente, com as portas de casa abertas. “Quem é doido de roubar aqui dentro? Já foi o tempo em que a polícia esculachava todo mundo”, contou o aposentado Pedro Morais, 65.
Os empresários também não se queixam da violência. É o caso da família Vilela. A filha Catarina, 26, abandonou o emprego de gerente de loja em shopping para, junto com a mãe, o pai e o marido, abrir um restaurante ao lado de casa. “Aqui está muito bom para viver e ganhar dinheiro”, avaliou a cozinheira.
Hospital particular é referência
O nome do Hospital Albert Einstein impõe respeito, em qualquer lugar do País. Em 1998, o centro de Saúde que é sinônimo de excelência instalou uma unidade em Paraisópolis. Alguns acham que é brincadeira. A população não acha; ao contrário, os moradores adoram e aprovam a iniciativa que em 13 anos já realizou 3,5 milhões de atendimentos em crianças. Os números são colossais. Lembram um hospital de grande porte. O complexo inspira diariamente a sua coordenadora, a pedagoga e presidente do departamento de voluntários do Hospital Albert Einstein, Telma Sobolh. “É um sonho que virou realidade à custa de muito trabalho e disposição”, contou Telma.
Atualmente o centro médico conta com 100 funcionários e 130 voluntários. No quadro há profissionais de todas as especialidades. “Se for necessário cirurgia ou remoção para o hospital é realizada em nossas ambulâncias”, explicou a coordenadora.
“Isso é uma maravilha, além do atendimento eles dão cesta básica, brinquedo, remédio. Não existe coisa melhor. Toda criança é tratada com respeito”, comentou o autônomo Ivanilson Souza, 30 anos.
Todos os meses a entidade distribui 10 mil cestas básicas e no Natal foram entregues 10 mil brinquedos. “Trabalhamos de forma global, no atendimento médico, na parte social e na geração de renda”, completou Telma.
Rei da sucata sonha em construir helicóptero
Berbela é um artista do ferro. Sem formação ou qualquer tipo de instrução técnica, é um dos milhares que não sabem ler ou escrever em Paraisópolis. O pernambucano utiliza a imaginação e sonhos para criar. Ele nasceu Antonio Ednaldo da Silva há 46 anos. O nome de batismo ficou só nos documentos.
Nas ruas de Paraisópolis, quando ele passa com as suas invenções, a maioria olha. As ‘berbelinhas” fazem sucesso. Elas são bicicletas equipadas com DVD, rádio, caixa de som e muitos apetrechos de ferro e solda.
No seu ateliê fica uma coleção impressionante. Borboletas, gatos, cães, ratos, máquinas e experimentos dividem o pequeno espaço do galpão onde funciona a serralheria. É ganha-pão da família, que chegou à favela em 2001, com um pouquinho de dinheiro e muita disposição. “Era necessário arriscar. Ficar no Interior não dava mais. A situação estava preta”, lembrou Berbela.
A mulher já chegou a chamá-lo de doido. “Maluco vai ser quando eu construir um helicóptero de sucata.”
Rúgbi é esporte popular na comunidade
O rúgbi é tradicionalmente um esporte de elite. Em Paraisópolis é diferente. Ali é um dos esportes preferidos de parte da garotada. Ninguém quer ser Ronaldinho ou Ronaldo. Mas todos sonham em participar da Seleção Brasileira.
O campo é o mesmo, a conhecida casa do Palmeirinha, o maior time de várzea da favela. Uma área de terra batida, com alambrado e refletores, onde mais de 1.000 jovens já praticaram a modalidade nos últimos seis anos, após um grupo de amigos da região do Morumbi decidiu criar o projeto Rúgbi para Todos.
“Somos um projeto educacional, onde o rúgbi é a ferramenta utilizada no desenvolvimento da cidadania através da prática de princípios, lemas e valores. Fazemos acompanhamento psicopedagógico e os alunos têm avaliação comportamental, fisicomotora e técnica em rúgbi”, explicou o coordenador do projeto, Maurício Draghi.
No dia em que a equipe do Diário esteve em Paraisópolis havia chovido muito e essa é uma condição para cancelamento da aula. Obedientes, 11 garotos estavam com a bola e uniforme e entraram em campo apenas quando a equipe do Diário pediu para registrar as imagens. Em dois minutos os times estavam formados e começou a ‘pelada”.
Durante a semana, os meninos e meninas treinam três vezes e atualmente 300 crianças e adolescentes fazem parte de um time vencedor. No ano passado, a turma conquistou títulos e esteve entre os melhores clubes de São Paulo, inclusive sendo campeã..