Correio Braziliense
Luta contra o analfabetismo
Renata Mariz
Primeiro a negativa do pai, que temia ver as filhas escrevendo bilhetes aos homens da cidade. Depois, a baiana de Santa Rita de Cássia migrou para Brasília e teve oito filhos. A luta diária para dar uma vida decente à prole adiou o sonho de saber juntar letras e reconhecê-las como palavras. “A coisa mais linda que eu achava era ver as pessoas lendo a Bíblia na hora da reza”, conta Valdete de Sousa Leite. Hoje, aos 62 anos, ela frequenta uma turma de alfabetização e já consegue acompanhar as orações na igreja. A mulher pode se considerar uma vitoriosa, especialmente porque, no Brasil, quase um terço da população na faixa etária de Valdete — 60 anos ou mais — não sabe ler nem escrever. Enquanto o país avança na educação infantil, com redução de 12,3% para 7,3% de crianças analfabetas entre 2000 e 2008, no mesmo período, o problema entre pessoas com idade superior a 15 anos diminuiu apenas três pontos percentuais — 12,9% para 9,9%. Dos 50 anos em diante, o índice dos que não sabem sequer assinar o próprio nome é superior a 20%.
Um encontro encerrado na última sexta-feira sobre educação de adultos, hoje um dos maiores desafios do ensino no Brasil, reuniu mais de 40 ministros de Estado da área e delegações de 156 países em Belém (PA). O documento final da conferência reafirmou o compromisso acordado em 2000, no Fórum Mundial de Educação, em Dakar, de reduzir o analfabetismo entre pessoas com idade superior a 15 anos em 50% até 2015. Isso significa, para o Brasil, cair dos atuais 9,9% para 6,75% — cerca de três pontos percentuais nos próximos seis anos. Tarefa difícil se o ritmo atual continuar, uma vez que esse mesmo índice de redução (três pontos percentuais) foi obtido nos últimos oito anos (veja quadro). Para acelerar o processo, André Lázaro, secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (MEC), pretende fortalecer uma articulação com outras pastas.
“Acredito que atingiremos a meta na medida em que conseguirmos reunir as políticas públicas. Vamos nos articular com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, para que nos ajude a identificar o agricultor que precisa de alfabetização. O mesma acontecerá com o Ministério da Pesca”, afirma Lázaro. Outras pastas já trabalham com o MEC, diz o secretário, tais como a da Saúde e a do Desenvolvimento Social. Este ano, foram quase 5 milhões de matrículas na educação de jovens e adultos no país.
O problema, entretanto, vai além de garantir a oferta de turmas: também engloba o combate a evasão, estimada em torno de 30% a 40%. “Tem que haver um trabalho de motivação, até para que o aluno não fique apenas na alfabetização, mas siga adiante”, destaca Salete Camba, diretora de relações institucionais do Instituto Paulo Freire. Segundo ela, a desistência entre a alfabetização e a continuidade da educação, entre jovens e adultos, chega a 60%. “As razões são diversas. Muitas vezes, a escola fica distante da casa do aluno, a metodologia não é atrativa, há falta de professores treinados, além de, claro, existirem os estudantes que só querem mesmo aprender o básico para poder pegar um ônibus e assinar documentos”, enumera Salete.
Antônio Marcos de Sousa, 67 anos, ainda não se sente preparado para dar o próximo passo, mas nem pensa em sair da turma de alfabetização que frequenta. Há sete anos estudando, aprendeu a escrever e ler “um pouquinho”. “Fora de época, é muito difícil, a cabeça da gente não está mais funcionando bem. Mas eu gosto demais daqui. Pensar que a vida inteira eu fui analfabeto e hoje eu tenho curiosidade de ler. Quando pego um papel de propaganda na rua, leio logo para saber o que é”, conta o piauiense de Teresina. Para Maria de Lourdes Pereira dos Santos, coordenadora do Centro de Educação e Cultura do Paranoá (Cedep), onde Antônio estuda, o mais importante é elevar a autoestima dos alunos. “Damos uma sacudida no camarada para ele perceber que consegue”, diz.
Sem financiamento
O Cedep, hoje com cerca de 100 adultos na alfabetização, é um exemplo de entidade que faz o papel de escola. Sem financiamento permanente do governo — só quando fecha projetos pontuais —, sobrevive com a ajuda de voluntários. “As educadoras são estudantes de pedagogia e vêm aqui para aprender também”, explica Maria de Lourdes. Para Salete Camba, do Instituto Paulo Freire, o problema da oferta de turmas para adultos nos colégios públicos está na falta de estrutura das redes de ensino estaduais e municipais, mas também em uma cultura que não enxerga tal modalidade como uma prioridade. Quase 10% dos municípios do país não têm aulas para esse público. Em outros, a oferta é muito limitada.
Em nível federal, entretanto, Salete destaca que houve um avanço, com a educação de jovens e adultos contemplada no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) — que paga valor mínimo de R$ 1.221,34 anuais por cada aluno na educação fundamental regular, e R$ 977,07 para os inseridos nas classes de jovens e adultos. “Ou seja, dinheiro existe. Basta o município ou o estado querer ofertar”, salienta Salete. André Lázaro, do MEC, esclarece que a diferença de 20% entre as duas modalidades se deve à taxa de desistência elevada dos alunos adultos. “É um fator estipulado no financiamento para compensar a evasão e distribuir melhor os recursos”, explica.
O número
20% : Índice de brasileiros acima dos 50 anos que não sabem ler nem escrever
O número
R$ 1.221,34 : Valor anual pago pelo Fundeb por cada aluno matriculado na educação fundamental regular
O número
R$ 977,07 : Valor anual pago pelo Fundeb por cada aluno matriculado nas modalidades para jovens e adultos
Desigualdade regional
No Nordeste, mais de 40% da população de 50 anos em diante é analfabeta. Veja os índices mais recentes, referentes a 2008, de cada região brasileira:
Região Proporção de analfabetos na população com 50 anos ou mais
Nordeste 41,3%
Norte 28,7%
Centro-Oeste 21,8%
Sudeste 13,2%
Sul 12,8%
Brasil 21,5%
Redução gradual
Mais de 20% dos brasileiros com idade superior a 50 anos não sabem ler nem escrever. Quanto mais alta a faixa etária, pior a situação. Confira a evolução do combate ao analfabetismo ao longo dos últimos anos:
Faixa etária Proporção de analfabetos em 2000 Proporção de analfabetos em 2008 Variação:
Entre 7 e 14 anos 12,3% 7,3% -5%
15 anos ou mais 12,9% 9,9% -3%
30 anos ou mais 19,1% 13,7% -5,4%
50 anos ou mais 28,4% 21,5% -6,9%
60 anos ou mais 34,2% 27,9% -6,3%
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)